Por Friends of Angola
Luanda, 22 de Outubro de 2025
Resumo:
O relatório da Friends of Angola (FOA) analisa a realidade das mulheres vendedoras ambulantes — conhecidas como zungueiras — em Angola entre 2021 e 2025, destacando a sua importância económica e social, bem como as graves violações de direitos humanos que continuam a enfrentar.
As zungueiras são um pilar essencial da economia informal, sustentando milhares de famílias num contexto de desemprego e pobreza. No entanto, permanecem marginalizadas, criminalizadas e expostas à violência institucional, especialmente em Luanda e noutras grandes cidades.
Durante o período analisado, registou-se um aumento preocupante da repressão, incluindo agressões físicas, abusos sexuais, extorsões e apreensões arbitrárias de mercadorias por parte de fiscais municipais e agentes da Polícia Nacional. Casos emblemáticos, como o assassinato de Raquel Kalupe em 2023, ilustram o clima de impunidade e falta de responsabilização do Estado.
O relatório identifica violações à legislação nacional, nomeadamente o Código Penal Angolano (Lei n.º 38/20), e a diversos instrumentos internacionais de direitos humanos, incluindo a CEDAW, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, a Convenção n.º 190 da OIT, e o Protocolo de Maputo.
A FOA recomenda:
- Diálogo permanente entre o Governo e as associações de zungueiras;
- Formação em direitos humanos para agentes públicos;
- Criação de mercados e zonas seguras de comércio;
- Investigação e punição de abusos;
- Integração socioeconómica das zungueiras em políticas de proteção e crédito social.
O relatório conclui que as zungueiras são as protagonistas invisíveis da economia angolana, mas continuam a ser tratadas como infratoras. A paz social e a justiça só serão alcançadas quando o Estado reconhecer o valor dessas mulheres, regular o comércio informal com equidade e garantir o respeito à dignidade humana.
- Introdução
O termo “zungueira” deriva do verbo bantu zungar, que significa “andar de um lado para o outro vendendo”. Em Angola, designa as mulheres que exercem o comércio informal ambulante, vendendo produtos diversos nas ruas, mercados e praças — com maior incidência na cidade de Luanda.
Ao longo das últimas décadas, a zunga tornou-se um pilar essencial da economia popular, garantindo o sustento de milhares de famílias e contribuindo para a subsistência de comunidades urbanas e periurbanas. Entretanto, apesar de sua importância socioeconômica, as zungueiras continuam a enfrentar violência institucional, discriminação de gênero e repressão policial, sendo frequentemente tratadas como um “problema de ordem pública” e não como agentes econômicas legítimas.
- Enquadramento Histórico
Após o fim da guerra civil, o comércio informal cresceu como estratégia de sobrevivência diante do desemprego estrutural e da exclusão social. A ausência de políticas públicas eficazes de emprego e proteção social levou milhares de mulheres — em sua maioria chefes de família, entre 25 e 50 anos, com baixo nível de escolaridade — a recorrerem à zunga como única fonte de renda.
Contudo, essas mulheres exercem sua atividade em condições precárias, expostas ao sol e à chuva, sem acesso a espaços adequados, proteção jurídica ou segurança social. Pior: enfrentam perseguições sistemáticas de fiscais municipais e agentes da Polícia Nacional, que frequentemente apreendem suas mercadorias, aplicam multas arbitrárias e cometem agressões físicas e verbais.
- Situação Atual (2021–2025)
Embora o governo angolano, por meio do Ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, Marcy Lopes, tenha declarado melhorias no campo dos direitos humanos durante a Revisão Periódica Universal (RPU) junto ao Conselho dos Direitos Humanos da ONU, a realidade vivida pelas zungueiras contradiz esse discurso oficial.
Entre 2021 e 2025, observou-se a intensificação da repressão estatal e o agravamento das condições de trabalho das zungueiras. Casos documentados incluem:
- Março de 2023: a ativista Laurinda Gouveia denunciou o assassinato de Raquel Kalupe, zungueira baleada por agentes policiais durante uma operação em Luanda.
- Dezembro de 2022: a ONG Mãos Livres exigiu investigação sobre o mesmo caso, afirmando que o uso excessivo da força reflete “a incapacidade do Estado em estruturar o comércio informal”.
- 2022–2024: o Movimento Mulheres pelos Direitos Civis e Políticos (MMDCP) relatou abusos recorrentes, incluindo agressões físicas, verbais e assédio sexual contra vendedoras ambulantes.
- 2024: o Decreto Presidencial n.º 111/24, promulgado para supostamente organizar a atividade da zunga, resultou em maior repressão, com relatos de uso desproporcional da força e práticas de extorsão.
Segundo José Ambrósio Cassoma, presidente da Associação Nacional de Vendedores Ambulantes de Angola (ANAVA), muitas zungueiras são vítimas de chantagem sexual e tortura psicológica, sendo forçadas a subornar fiscais para evitar a perda de seus produtos.
- Violações aos Instrumentos Nacionais e Internacionais
A repressão contra as zungueiras constitui violação grave dos direitos humanos e trabalhistas, tanto sob a legislação angolana quanto nos tratados internacionais ratificados por Angola.
Legislação Nacional Violada
- Art. 144.º – Ofensas corporais
- Art. 150.º – Abuso de poder
- Art. 154.º – Coação sexual
(Código Penal Angolano, Lei n.º 38/20)
Instrumentos Internacionais Violados
- Declaração Universal dos Direitos Humanos:
- Art. 3.º — Direito à segurança e dignidade humana
- Art. 23.º — Direito ao trabalho digno
- CEDAW — Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher:
- Art. 11.º e 14.º — Proteção das mulheres trabalhadoras, inclusive no setor informal
- Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos:
- Art. 15.º — Direito ao trabalho
- Art. 18.º, n.º 3 — Proteção das mulheres
- Convenção n.º 190 da OIT: Proteção contra violência e assédio no trabalho
- Protocolo de Maputo: Direito à integridade física, dignidade e inclusão econômica das mulheres africanas
Essas violações revelam um padrão sistêmico de negligência e impunidade, incompatível com os compromissos internacionais assumidos pelo Estado angolano.
- Testemunhos das Zungueiras
Os relatos a seguir evidenciam o impacto humano das políticas repressivas:
Isabel Barbosa:
“Os fiscais levam a nossa banheira e não devolvem mais. Isso tem causado muitos transtornos. Trabalhar assim é quase impossível.”
Dana Bem-vinda:
“Os fiscais nos abordam sem respeito, confiscam os produtos e só devolvem mediante pagamento. Alguns chegam a pedir favores íntimos. É humilhante.”
Entrevistada anônima (Mercado São Paulo):
“Passamos o dia inteiro a fugir. Se não pagamos a ‘gasosa’, somos agredidas. Às vezes, mesmo pagando, perdemos tudo.”
Entrevistada anônima:
“Já fugi com panelas no fogo. Os fiscais comem a nossa mercadoria e nunca respondem pelos danos.”
Entrevistada anônima:
“Tenho dores constantes nos pés e já fui agredida várias vezes. Eles ainda bebem as gasosas que vendemos. É uma luta diária.”
- Recomendações
Ao Governo de Angola
- Estabelecer diálogo permanente com associações de zungueiras e organizações da sociedade civil.
- Formar agentes públicos (fiscais e policiais) em direitos humanos e uso proporcional da força.
- Criar zonas seguras de comércio e mercados acessíveis, com condições dignas de higiene e segurança.
- Investigar e punir abusos cometidos por agentes do Estado.
- Integrar as zungueiras em programas de microcrédito, segurança social e formação profissional.
- Descentralizar oportunidades econômicas, reduzindo o êxodo de mulheres para Luanda e outras grandes cidades.
À Comunidade Internacional
- Instar o governo angolano a implementar as recomendações da CEDAW e da RPU da ONU.
- Apoiar financeiramente projetos de empoderamento econômico e jurídico para mulheres do setor informal.
- Promover campanhas regionais de sensibilização sobre violência institucional e gênero.
Conclusão
As zungueiras representam a espinha dorsal invisível da economia angolana, sustentando famílias e comunidades inteiras. Contudo, continuam a ser criminalizadas e violentadas por exercerem o seu direito de trabalhar e sobreviver.
Os últimos quatro anos demonstram um retrocesso preocupante na proteção dos direitos dessas mulheres. A paz social e a justiça só serão possíveis quando o Estado angolano reconhecer oficialmente o valor das zungueiras, regulamentar o comércio informal com equidade e garantir respeito à dignidade humana.
Sobre a Friends of Angola:
A Friends of Angola (FoA) é uma Organização Não-Governamental Internacional, sem fins lucrativos, com sede em Washington, D.C., dedicada à promoção da democracia, dos direitos humanos e da boa governação em Angola e na região da África Central.
Reconhecida pelo seu compromisso com a transparência, a justiça social e o fortalecimento da cidadania, a FoA desenvolve programas que visam empoderar jovens e mulheres, fortalecer a sociedade civil e promover uma cultura de responsabilização e participação cívica.
A organização possui Estatuto Consultivo junto ao Conselho Económico e Social das Nações Unidas (ECOSOC) e Estatuto de Observador junto da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, refletindo o seu papel ativo e credível na defesa e promoção dos direitos humanos em África.